segunda-feira, 26 de maio de 2014

A Floresta Medieval: Espaço de Alteridade e Marginalidade



Obs: Este texto foi originalmente concebido como um trabalho de faculdade, por isso talvez tenha uma linguagem ligeiramente diferente da que costumo usar aqui no blog.

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1. Introdução

Embora em processo de desmatamento desde a pré-história e mais intensamente desde os tempos romanos, durante a Idade Média as florestas ainda ocupavam grandes extensões do território europeu. Em uma sociedade espacialmente fragmentada e encelulada, as vegetações coníferas e as hoje quase extintas florestas temperadas ocupavam todos os espaços vagos entre os bolsões de terra cultivada e civilizada, de forma que algum bosque ou mata estava sempre dentro do alcance das pernas e da imaginação do homem medieval.

Dimensões do desmatamento entre a Alta Idade Média e a Idade Contemporânea 


O próprio termo floresta (ou forest, no inglês) deriva do latim foris, significando algo como do lado de fora. Vendo que deserto deriva de desertus - lugar abandonado, fora de ordem – fica claro o motivo pelo qual estes termos muitas vezes apareciam quase como sinônimos nos textos romanos e medievais. Para o homem medieval, mais importante que as especificidades de cada bioma era o fato de que todos os espaços selvagens eram tidos como externos, caóticos e indesejáveis. O que não deixa de ser contraditório (ou no mínimo irônico), visto a importância dos recursos que estes ambientes ofereciam.

Fora da sociedade organizada e longe das figuras de poder, a floresta estava repleta de perigos reais, como bandidos de estrada e animais selvagens. Mas foi no imaginário e na literatura que ela mais brilhou, sendo descrita como o espaço da magia, do sobrenatural, do maravilhoso e dos atos vilanescos. Seja nos poemas épicos, nas hagiografias ou na literatura cavalheiresca, com frequência é nas imensidões florestais que o santo ou herói precisa penetrar para enfrentar o demônio e seus agentes.

É seguro supor que este ambiente ocupava na mentalidade medieval um lugar como espaço por excelência do Outro, do Forasteiro (termo que deriva da mesma raiz foris, assim como o equivalente em inglês, foreign), do Marginal.

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2. O papel da floresta na sociedade medieval

O papel mais comumente lembrado da floresta na sociedade medieval é como mecanismo de poder da classe dominante, através da caça. Além de um entretenimento, a caça era uma ferramenta importante para reafirmar visualmente o domínio da nobreza sobre toda a extensão do território, inclusive as áreas ermas.

Cena de caça a animais grandes, um privilégio da nobreza


No entanto, não era esta a única importância das florestas. Apesar de toda a carga cultural negativa, as regiões não cultivadas ofereciam recursos importantes à economia medieval - embora ainda minoritários em relação ao cultivo agrícola.

Talvez o recurso mais óbvio seja a madeira, amplamente utilizada na fabricação de casas, móveis, ferramentas e, de modo geral, a maior parte dos utensílios medievais não metálicos. Mais que isso, a madeira era importante como lenha (especialmente no frio norte europeu) e para ser transformada (ainda dentro do espaço florestal, vale lembrar) em carvão vegetal, usado como combustível para forjas, vidrarias, fornos de produção de cerâmica e afins.

A floresta servia também como pastagem para animais como cavalos e, sobretudo, porcos, engordados com bolotas de carvalho como herança da tradição germânica. Nelas também se concentravam importantes depósitos de minerais, como ferro e carvão mineral.

A engorda dos porcos antes do inverno


Embora em geral as florestas fossem tidas como propriedades reais ou dos senhores locais, e seu uso fosse regulado e pesadamente cobrado, havia larga exploração destes recursos. O regime de trabalho variava: em alguns casos, haviam trabalhadores especializados, em outros, estes recursos eram explorados por grupos de camponeses agricultores, contratados para empreendimentos sazonais. De uma forma ou de outra, é importante notar que havia toda uma categoria social de trabalhadores ligados diretamente à floresta, que se aventuravam regularmente nestes espaços selvagens e marginais.

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3. Perigo e marginalidade

Mesmo pondo de lado todos os monstros e criaturas sobrenaturais que enchiam as páginas dos bestiários e povoavam o imaginário medieval, as regiões incultas estavam repletas de perigos mundanos. Bandidos e saqueadores (geralmente uma atividade sazonal) - embora conhecidos por atacar vilas, monastérios e até cidades - eram também menção recorrente em relatos de viagens e peregrinações através de áreas ermas.

Outra possível ameaça eram os animais selvagens. Os lobos, em especial, parecem ter causado grandes danos, justificando sua entrada massiva no imaginário (até hoje, poucas criaturas têm tanto apelo quanto o Lobisomem). Se eram comuns ataques em vilas e até mesmo em grandes cidades (como evidencia, por exemplo, o Diário do burguês de Paris, escrito entre 1409 e 1449), imagine nas regiões mais periféricas?

Lobo espreitando ovelhas


Apesar de todos os perigos reais, é possível encontrar outros fatores que levaram as florestas a serem retratadas como espaços de marginalidade. De fato, as culturas celtas e germânicas possuíam uma relação muito mais amigável com os bosques e regiões incultas que os romanos. O historiador romano Tácito, por exemplo, encontrou como maior ofensa chamar os inimigos de Roma de habitantes de florestas.

É possível atribuir o desprezo dos romanos aos territórios incultos a dois traços fortes de sua cultura: um é a necessidade de organização, o outro é a fixação pela ideia de um limes, de uma fronteira rígida e definida. Esta fixação está presente até em seu mito fundador, em que Rômulo mata Remo por desrespeitar uma linha fronteiriça traçada no chão. A oposição entre espaço civilizado e espaço selvagem, tão importante aos romanos, foi manteve-se viva na cultura medieval.

Outro elemento contribuinte para a imagem negativa das florestas foi o cristianismo e seu embate com as religiões politeístas locais, profundamente ligadas à natureza. Embora tenha havido exceções, como regra o cristianismo se espalhou negando elementos comuns das religiões anteriores, como o culto a figuras animais e a sacralidade de certos bosques ou árvores. O próprio essencialismo cristão incentivava os fiéis a negar a natureza terrena e voltar os olhos ao divino.

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4. A floresta no imaginário medieval

A floresta aparece na literatura medieval como espaço da magia e do maravilhoso, e sua presença está concentrada nos gêneros que compõem a chamada narrativa fantástica. Ela é comum nos poemas épicos, nos contos mitológicos, nas hagiografias dos mártires mais antigos e nos romances cavalheirescos; mas não nas crônicas, cantigas, hagiografias de vidas piedosas e biografias. Isso é sintomático do papel que a floresta ocupava dentro da produção literária medieval.

Aqui vou tomar como base parte do trabalho do mitólogo e mestre em literatura medieval Joseph Campbell. Em sua obra O Herói de Mil Faces, Campbell identifica algumas estruturas que permeiam as obras de narrativa fantástica. Uma dessas estruturas é a divisão entre o Mundo Comumonde o herói habita, e o Mundo Especial, onde ele vive aventuras e sofre provações.

Se na Idade Moderna o mundo especial se encontrava nas distantes terras da América, África
e Ásia, no século XX se mudou para o espaço sideral e mais recentemente para o mundo virtual, na Idade Média o mundo especial era, por excelência, a floresta.

Exemplos são o que não falta. Na Saga dos Volsungos (obra mais conhecida das Sagas Islandesas, redigidas no século XIII e derivadas de uma cultura oral muito mais antiga), Sigmung e seu filho Sinfiotli se refugiam do rei Siggeir em uma floresta, onde encontram trolls e vestem peles amaldiçoadas que os transformam em lobos (uma das mais antigas versões da lenda do lobisomem). Nas lendas arturianas, a floresta de Brocéliande é associada ao mago Merlin, além de ser palco de conflitos com diversas criaturas mágicas, como dragões e um cavaleiro que se transforma em uma fera quadrúpede para sequestrar Artur.

Mesmo em narrativas inteiramente passadas em ambiente urbano, Merlin era comumente retratado saindo da floresta


Sir Perceval, um Cavaleiro da Távola Redonda, enfrentando um dragão


Na lenda de São Jorge, embora o dragão estivesse atacando periodicamente uma cidade, o santo precisa ir até seu covil em uma região selvagem para enfrentá-lo. Em muitas hagiografias, a floresta ou deserto é apenas um lugar de penitência, onde o santo suporta as inclemências da natureza e resiste às tentações do demônio. Um exemplo curioso é a lenda de Robin Hood: mesmo havendo uma inversão de valores - onde o fora-da-lei é herói e o representante da lei é vilão - a associação cidade>lei, floresta>fora-da-lei se mantém.

No imaginário medieval, animais reais como o elefante estavam lado a lado com monstros como o dragão


Representar animais de terras distante nem sempre era fácil. Esse, teoricamente, é um crocodilo

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5. Conclusão

Malvista por seus perigos e sua ausência de ordem, porém necessária por seus recursos, a floresta não era totalmente aceita nem completamente excluída; estava sempre às margens da sociedade civilizada, tanto geograficamente quanto simbolicamente. O mesmo pode ser dito daqueles que escolhiam ter uma relação mais estreita com estes espaços; os trabalhadores florestais mencionados mais acima, além de qualquer um que viajasse com frequência demais, como mercadores itinerantes e ciganos. No imaginário, a floresta desempenhava o papel de um mundo fantástico, povoado por monstros, bruxas, metamorfos e agentes do demônio.

Em grande parte, a identidade do homem medieval como um ser civilizado, capaz de cultivar
a terra, construir cidades e criar leis foi construída através da oposição a uma terra inculta, selvagem e sem leis.

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6. Bibliografia

ANÔNIMO – Saga dos Volsungos – séc XIII

BASCHET, Jérôme – A Civilização Feudal: Do Ano Mil à Colonização da América

BEAUNE, Colette – Os Lobos: Cidades Ameaçadas in História Viva ano IV nº38

BIRRELL, Jean – Peasant Craftsman in the Medieval Forest

CAMPBELL, Joseph – O Herói de Mil Faces

CONDURACHI, Émile – Roma: Berço da Latinidade in DUBY, Georges – A Civilização Latina: Dos Tempos Antigos ao Mundo Moderno

LE GOFF, Jacques - O Imaginário Medieval

PASTOUREAU, Michel – No Tempo dos Cavaleiros da Távola Redonda

SCHAFER, Adam – Forests as Exercises in Medieval Power

WILLIAMS, Michael – Dark Ages and Dark Areas: Global Deforestation in the Deep Past

WILSON, Dolores – Multi-Use Management of the Medieval Anglo-Norman Forest

1 comentários:

Unknown disse...

Apreciei o artigo e as ilustrações. Cumprimentos pelo trabalho. Por gentileza, pode informar se o trabalho para a faculdade que embasou o artigo está disponível? Se sim, possível conseguir acesso? Obrigado. José Maia

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