A proposta deste texto é bem simples. Eu identifiquei três tipos de cenários que se repetem com frequência em mídias diversas (livros, filmes, videogames) e enumerei alguns elementos em comum entre eles. Minha ideia é entender por que esses cenários possuem tanto apelo ao público (principalmente o auto-intitulado nerd/geek) e por que são terrenos tão férteis para o desenvolvimento de narrativas (e isso inclui campanhas de RPG).
Os cenários escolhidos por mim foram a Europa Feudal (que pode ser fantástica ou não), o Velho Oeste Americano e o Mundo Pós-Apocalíptico (dentro deste último, o mais popular atualmente é o Apocalipse Zumbi, por isso vou me focar nele). As características enumeradas abaixo podem se aplicar a outras ambientações; estas três foram elegidas por serem minhas favoritas pessoais.
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1. Espaço
Costumamos ver jornadas através de amplos espaços rurais (no caso do Pós-Apocalipse, são comuns antigos espaços urbanos abandonados), com pouco traço de civilização e fronteiras incertas.
- Europa Feudal: se considerarmos que só após a Revolução Industrial a população urbana ultrapassou a rural, e isso apenas nos países industrializados, qualquer época antes disso teria esta característica. Mas o período feudal em especial está localizado justo entre o declínio das cidades antigas e o Renascimento da vida urbana.
- Velho Oeste: antes ocupado apenas por populações indígenas nômades e semi-nômades (que, portanto, não construíam cidades), o oeste americano foi colonizado quase exclusivamente por atividades rurais: agricultura, pecuária e mineração.
- Pós-Apocalipse: em qualquer tipo de crise generalizada, as cidades grandes costumam ser as primeiras atingidas; principalmente no caso de alguma doença contagiosa, como um outbreak zumbi.
A questão é que espaços amplos e vazios como esses funcionam como uma grande caixa de areia, onde é possível posicionar com facilidade qualquer tipo de desafio para os protagonistas.
2. Pessoas
Vemos uma baixa presença de seres humanos, e os protagonistas costumam passar grande parte da história sozinhos. Esta característica está muito fortemente relacionada à anterior.
- Europa Feudal: a baixa densidade demográfica é uma característica da época, e as atividades rurais supõem uma dispersão do homem no espaço.
- Velho Oeste: novamente, a relação entre atividades rurais e a baixa quantidade de pessoas.
- Pós-Apocalipse: nenhuma super-crise merece a honra de ser chamada de Apocalipse se não houver uma enorme quantidade de mortos envolvidos. Faz parte.
A ausência de seres humanos é uma ótima desculpa para os protagonistas interagirem mais entre si, desenvolvendo suas relações. Além disso, cada encontro com outras pessoas adquire automaticamente um peso dramático extra.
3. Poder
Ausência parcial ou total de um poder estatal centralizado. Prevalecem os poderes a nível local, as relações privadas de poder, as usurpações, o "olho por olho, dente por dente".
- Europa Feudal: no auge da desintegração do Estado, poder privado era a regra, e até cargos antes públicos (como Rei ou Duque) eram agora mantidos por relações pessoais. Na ausência de Constituição, a Justiça era exercida pelos senhores locais; na ausência de um exército estatal, a força bélica era fragmentada.
- Velho Oeste: o Estado até existia, mas tinha dificuldade em fazer valer sua autoridade nos territórios selvagens da fronteira. Por isso era tão grande a prática dos Caçadores de Recompensas (que, aliás, existem até hoje nos EUA), que faziam o papel de justiça em troca de pagamento.
- Pós-Apocalipse: em um mundo onde a regra é matar ou morrer, milícias e grupos armados fazem o possível para sobreviver. Se há algum resquício de um Estado forte, ele não se expande às regiões incultas (é o caso de The Last of Us), onde o poder paralelo reina.
Além de eliminar a possibilidade de os protagonistas pedirem ajuda a um poder superior - forçando-os a resolver seus problemas sozinhos - os próprios poderes locais ou paralelos podem constituir desafios terríveis.
4. Violência
A violência é presente, comum e justificada. Além disso, o acesso a armamentos é muito fácil.
- Europa Feudal: em um mundo com piores condições de saúde, as pessoas estavam muito mais habituadas à morte.Além disso, as guerras eram constantes, sazonais. Na realidade, o acesso a armamentos verdadeiros (como espadas) não era tão fácil quanto a ficção representa - mas, num mundo de armas brancas, um arco de caça, uma lança de madeira, um machado de cortar lenha ou um facão de trinchar carne podem ser armamento suficiente.
- Velho Oeste: devido a motivos culturais que remontam à Independência dos EUA, o acesso a armas de fogo era tão fácil que deixa resquícios disso até hoje.
- Pós-Apocalipse: em um mundo sem polícia, você não vai ser preso por carregar uma pistola na cintura. Além disso, pura seleção natural: quem não tem como matar, acaba sendo morto.
Com a fascinação que o ser humano e a indústria do entretenimento têm pela violência, qualquer cenário que facilite isso é promissor.
5. Alteridade
A presença de um Outro, alguém que seja essencialmente diferente dos protagonistas.
- Europa Feudal: em um ocidente quase inteiramente cristão, o Outro é o Infiel. Pagãos (como os vikings), muçulmanos, judeus, bruxas e hereges são os inimigos naturais. Caso o cenário seja de Fantasia Medieval, tem sempre os orcs pra matar sem culpa.
- Velho Oeste: o uso do indígena (ou native american) como inimigo desalmado hoje é politicamente incorreto, embora fosse a regra nos westerns mais antigos. Mas o índio ainda pode ser o Outro, o povo misterioso, com suas próprias tradições e magias.
- Pós-Apocalipse: aqui se explica o porquê do Apocalipse Zumbi ser tão popular. Um morto-vivo é um inimigo que pode ser morto e trucidado sem culpa. Além disso, a oposição vivo / não-vivo é um tema forte.
A presença de toda uma raça inimiga (ou mesmo não-inimiga) tão diferente dos protagonistas ajuda a dar identidade a eles próprios. Afinal, nós definimos o Eu em oposição ao Outro.
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Os cenários escolhidos por mim foram a Europa Feudal (que pode ser fantástica ou não), o Velho Oeste Americano e o Mundo Pós-Apocalíptico (dentro deste último, o mais popular atualmente é o Apocalipse Zumbi, por isso vou me focar nele). As características enumeradas abaixo podem se aplicar a outras ambientações; estas três foram elegidas por serem minhas favoritas pessoais.
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1. Espaço
Costumamos ver jornadas através de amplos espaços rurais (no caso do Pós-Apocalipse, são comuns antigos espaços urbanos abandonados), com pouco traço de civilização e fronteiras incertas.
- Europa Feudal: se considerarmos que só após a Revolução Industrial a população urbana ultrapassou a rural, e isso apenas nos países industrializados, qualquer época antes disso teria esta característica. Mas o período feudal em especial está localizado justo entre o declínio das cidades antigas e o Renascimento da vida urbana.
- Velho Oeste: antes ocupado apenas por populações indígenas nômades e semi-nômades (que, portanto, não construíam cidades), o oeste americano foi colonizado quase exclusivamente por atividades rurais: agricultura, pecuária e mineração.
- Pós-Apocalipse: em qualquer tipo de crise generalizada, as cidades grandes costumam ser as primeiras atingidas; principalmente no caso de alguma doença contagiosa, como um outbreak zumbi.
A questão é que espaços amplos e vazios como esses funcionam como uma grande caixa de areia, onde é possível posicionar com facilidade qualquer tipo de desafio para os protagonistas.
Como se já não bastassem a história emocionante e os personagens carismáticos, The Last of Us (2013) tem os melhores cenários pós-apocalípticos que eu já vi
2. Pessoas
Vemos uma baixa presença de seres humanos, e os protagonistas costumam passar grande parte da história sozinhos. Esta característica está muito fortemente relacionada à anterior.
- Europa Feudal: a baixa densidade demográfica é uma característica da época, e as atividades rurais supõem uma dispersão do homem no espaço.
- Velho Oeste: novamente, a relação entre atividades rurais e a baixa quantidade de pessoas.
- Pós-Apocalipse: nenhuma super-crise merece a honra de ser chamada de Apocalipse se não houver uma enorme quantidade de mortos envolvidos. Faz parte.
A ausência de seres humanos é uma ótima desculpa para os protagonistas interagirem mais entre si, desenvolvendo suas relações. Além disso, cada encontro com outras pessoas adquire automaticamente um peso dramático extra.
A falta de opção te faz interagir com cada maluco... (True Grit, 2010)
3. Poder
Ausência parcial ou total de um poder estatal centralizado. Prevalecem os poderes a nível local, as relações privadas de poder, as usurpações, o "olho por olho, dente por dente".
- Europa Feudal: no auge da desintegração do Estado, poder privado era a regra, e até cargos antes públicos (como Rei ou Duque) eram agora mantidos por relações pessoais. Na ausência de Constituição, a Justiça era exercida pelos senhores locais; na ausência de um exército estatal, a força bélica era fragmentada.
- Velho Oeste: o Estado até existia, mas tinha dificuldade em fazer valer sua autoridade nos territórios selvagens da fronteira. Por isso era tão grande a prática dos Caçadores de Recompensas (que, aliás, existem até hoje nos EUA), que faziam o papel de justiça em troca de pagamento.
- Pós-Apocalipse: em um mundo onde a regra é matar ou morrer, milícias e grupos armados fazem o possível para sobreviver. Se há algum resquício de um Estado forte, ele não se expande às regiões incultas (é o caso de The Last of Us), onde o poder paralelo reina.
Além de eliminar a possibilidade de os protagonistas pedirem ajuda a um poder superior - forçando-os a resolver seus problemas sozinhos - os próprios poderes locais ou paralelos podem constituir desafios terríveis.
O Xerife decidiu que na cidade dele é proibido entrar armado. E a pena por desobedecer é o que ele quiser (Unforgiven, 1992)
4. Violência
A violência é presente, comum e justificada. Além disso, o acesso a armamentos é muito fácil.
- Europa Feudal: em um mundo com piores condições de saúde, as pessoas estavam muito mais habituadas à morte.Além disso, as guerras eram constantes, sazonais. Na realidade, o acesso a armamentos verdadeiros (como espadas) não era tão fácil quanto a ficção representa - mas, num mundo de armas brancas, um arco de caça, uma lança de madeira, um machado de cortar lenha ou um facão de trinchar carne podem ser armamento suficiente.
- Velho Oeste: devido a motivos culturais que remontam à Independência dos EUA, o acesso a armas de fogo era tão fácil que deixa resquícios disso até hoje.
- Pós-Apocalipse: em um mundo sem polícia, você não vai ser preso por carregar uma pistola na cintura. Além disso, pura seleção natural: quem não tem como matar, acaba sendo morto.
Com a fascinação que o ser humano e a indústria do entretenimento têm pela violência, qualquer cenário que facilite isso é promissor.
Eu vou querer uma porção grande de Violência, com uma dose extra de sangue (Braveheart, 1995)
5. Alteridade
A presença de um Outro, alguém que seja essencialmente diferente dos protagonistas.
- Europa Feudal: em um ocidente quase inteiramente cristão, o Outro é o Infiel. Pagãos (como os vikings), muçulmanos, judeus, bruxas e hereges são os inimigos naturais. Caso o cenário seja de Fantasia Medieval, tem sempre os orcs pra matar sem culpa.
- Velho Oeste: o uso do indígena (ou native american) como inimigo desalmado hoje é politicamente incorreto, embora fosse a regra nos westerns mais antigos. Mas o índio ainda pode ser o Outro, o povo misterioso, com suas próprias tradições e magias.
- Pós-Apocalipse: aqui se explica o porquê do Apocalipse Zumbi ser tão popular. Um morto-vivo é um inimigo que pode ser morto e trucidado sem culpa. Além disso, a oposição vivo / não-vivo é um tema forte.
A presença de toda uma raça inimiga (ou mesmo não-inimiga) tão diferente dos protagonistas ajuda a dar identidade a eles próprios. Afinal, nós definimos o Eu em oposição ao Outro.
"Matar um infiel, o Papa disse, não é assassinato. É o caminho para o paraíso." (Kingdom of Heaven, 2005)
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Caso você, leitor, seja um mestre de RPG, faça um experimento: narre uma aventura ou campanha que se passe num dos cenários acima e aborde os conceitos que eu descrevi. Veja se o resultado não será uma experiência de jogo rica e interessante.
Toda essa iconografia western em The Walking Dead (2003~ ou 2010~) parece ainda mais pertinente agora, não?
E aí, consegue pensar em algum outro cenário clássico ao qual essas características se apliquem?
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