sábado, 11 de janeiro de 2014

Caveleiros, Cowboys e Sobreviventes



A proposta deste texto é bem simples. Eu identifiquei três tipos de cenários que se repetem com frequência em mídias diversas (livros, filmes, videogames) e enumerei alguns elementos em comum entre eles. Minha ideia é entender por que esses cenários possuem tanto apelo ao público (principalmente o auto-intitulado nerd/geek) e por que são terrenos tão férteis para o desenvolvimento de narrativas (e isso inclui campanhas de RPG).

Os cenários escolhidos por mim foram a Europa Feudal (que pode ser fantástica ou não), o Velho Oeste Americano e o Mundo Pós-Apocalíptico (dentro deste último, o mais popular atualmente é o Apocalipse Zumbi, por isso vou me focar nele). As características enumeradas abaixo podem se aplicar a outras ambientações; estas três foram elegidas por serem minhas favoritas pessoais.

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1. Espaço

Costumamos ver jornadas através de amplos espaços rurais (no caso do Pós-Apocalipse, são comuns antigos espaços urbanos abandonados), com pouco traço de civilização e fronteiras incertas. 

- Europa Feudal: se considerarmos que só após a Revolução Industrial a população urbana ultrapassou a rural, e isso apenas nos países industrializados, qualquer época antes disso teria esta característica. Mas o período feudal em especial está localizado justo entre o declínio das cidades antigas e o Renascimento da vida urbana.

- Velho Oeste: antes ocupado apenas por populações indígenas nômades e semi-nômades (que, portanto, não construíam cidades), o oeste americano foi colonizado quase exclusivamente por atividades rurais: agricultura, pecuária e mineração.

- Pós-Apocalipse: em qualquer tipo de crise generalizada, as cidades grandes costumam ser as primeiras atingidas; principalmente no caso de alguma doença contagiosa, como um outbreak zumbi.

A questão é que espaços amplos e vazios como esses funcionam como uma grande caixa de areia, onde é possível posicionar com facilidade qualquer tipo de desafio para os protagonistas.


Como se já não bastassem a história emocionante e os personagens carismáticos, The Last of Us (2013) tem os melhores cenários pós-apocalípticos que eu já vi


2. Pessoas

Vemos uma baixa presença de seres humanos, e os protagonistas costumam passar grande parte da história sozinhos. Esta característica está muito fortemente relacionada à anterior.

- Europa Feudal: a baixa densidade demográfica é uma característica da época, e as atividades rurais supõem uma dispersão do homem no espaço.

- Velho Oeste: novamente, a relação entre atividades rurais e a baixa quantidade de pessoas.

- Pós-Apocalipse: nenhuma super-crise merece a honra de ser chamada de Apocalipse se não houver uma enorme quantidade de mortos envolvidos. Faz parte.

A ausência de seres humanos é uma ótima desculpa para os protagonistas interagirem mais entre si, desenvolvendo suas relações. Além disso, cada encontro com outras pessoas adquire automaticamente um peso dramático extra.


A falta de opção te faz interagir com cada maluco... (True Grit, 2010)


3. Poder

Ausência parcial ou total de um poder estatal centralizado. Prevalecem os poderes a nível local, as relações privadas de poder, as usurpações, o "olho por olho, dente por dente".

- Europa Feudal: no auge da desintegração do Estado, poder privado era a regra, e até cargos antes públicos (como Rei ou Duque) eram agora mantidos por relações pessoais. Na ausência de Constituição, a Justiça era exercida pelos senhores locais; na ausência de um exército estatal, a força bélica era fragmentada.

- Velho Oeste: o Estado até existia, mas tinha dificuldade em fazer valer sua autoridade nos territórios selvagens da fronteira. Por isso era tão grande a prática dos Caçadores de Recompensas (que, aliás, existem até hoje nos EUA), que faziam o papel de justiça em troca de pagamento.

- Pós-Apocalipse: em um mundo onde a regra é matar ou morrer, milícias e grupos armados  fazem o possível para sobreviver. Se há algum resquício de um Estado forte, ele não se expande às regiões incultas (é o caso de The Last of Us), onde o poder paralelo reina.

Além de eliminar a possibilidade de os protagonistas pedirem ajuda a um poder superior - forçando-os a resolver seus problemas sozinhos - os próprios poderes locais ou paralelos podem constituir desafios terríveis.


O Xerife decidiu que na cidade dele é proibido entrar armado. E a pena por desobedecer é o que ele quiser (Unforgiven, 1992)


4. Violência

A violência é presente, comum e justificada. Além disso, o acesso a armamentos é muito fácil.

- Europa Feudal: em um mundo com piores condições de saúde, as pessoas estavam muito mais habituadas à morte.Além disso, as guerras eram constantes, sazonais. Na realidade, o acesso a armamentos verdadeiros (como espadas) não era tão fácil quanto a ficção representa - mas, num mundo de armas brancas, um arco de caça, uma lança de madeira, um machado de cortar lenha ou um facão de trinchar carne podem ser armamento suficiente.

- Velho Oeste: devido a motivos culturais que remontam à Independência dos EUA, o acesso a armas de fogo era tão fácil que deixa resquícios disso até hoje.

- Pós-Apocalipse: em um mundo sem polícia, você não vai ser preso por carregar uma pistola na cintura. Além disso, pura seleção natural: quem não tem como matar, acaba sendo morto.

Com a fascinação que o ser humano e a indústria do entretenimento têm pela violência, qualquer cenário que facilite isso é promissor.


Eu vou querer uma porção grande de Violência, com uma dose extra de sangue (Braveheart, 1995)


5. Alteridade

A presença de um Outro, alguém que seja essencialmente diferente dos protagonistas.

- Europa Feudal: em um ocidente quase inteiramente cristão, o Outro é o Infiel. Pagãos (como os vikings), muçulmanos, judeus, bruxas e hereges são os inimigos naturais. Caso o cenário seja de Fantasia Medieval, tem sempre os orcs pra matar sem culpa.

- Velho Oeste: o uso do indígena (ou native american) como inimigo desalmado hoje é politicamente incorreto, embora fosse a regra nos westerns mais antigos. Mas o índio ainda pode ser o Outro, o povo misterioso, com suas próprias tradições e magias.

- Pós-Apocalipse: aqui se explica o porquê do Apocalipse Zumbi ser tão popular. Um morto-vivo é um inimigo que pode ser morto e trucidado sem culpa. Além disso, a oposição vivo / não-vivo é um tema forte.

A presença de toda uma raça inimiga (ou mesmo não-inimiga) tão diferente dos protagonistas ajuda a dar identidade a eles próprios. Afinal, nós definimos o Eu em oposição ao Outro.


"Matar um infiel, o Papa disse, não é assassinato. É o caminho para o paraíso." (Kingdom of Heaven, 2005)

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Caso você, leitor, seja um mestre de RPG, faça um experimento: narre uma aventura ou campanha que se passe num dos cenários acima e aborde os conceitos que eu descrevi. Veja se o resultado não será uma experiência de jogo rica e interessante.

Toda essa iconografia western em The Walking Dead (2003~ ou 2010~) parece ainda mais pertinente agora, não?


E aí, consegue pensar em algum outro cenário clássico ao qual essas características se apliquem?

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