segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A cultura humana e o monomito



De uns tempos pra cá, vem se popularizado o termo Jornada do Herói; e muitas pessoas têm se conscientizado da existência de um modelo recorrente de estrutura narrativa. Por ignorância, a maior parte destas pessoas costuma enxergar a estrutura como uma muleta, uma demonstração de falta de criatividade ou até mesmo como um mecanismo da poderosa indústria do entretenimento. Vou começar este texto tentando desfazer alguns desses mitos.

Em meu post anterior sobre Cultura (aqui), num momento eu falo sobre a teoria da existência de uma "cultura humana global", um substrato básico de conhecimento que todas as sociedades humanas compartilham. Seguindo mais ou menos nesta linha, o mitólogo estadunidense Joseph Campbell chegou à conclusão de que os mitos de todas as sociedades ao redor do mundo compartilham uma estrutura similar, uma série de etapas que foram gravadas no inconsciente humano ao longo de seus milhares de anos como caçadores-coletores primitivos.

Esta é a teoria do Monomito, e a sequência dessas etapas forma a chamada Jornada do Herói.

Isto significa que falta criatividade à espécie humana? Que a indústria do entretenimento se aproveita de uma velha fórmula para facilitar seu trabalho?

Nada disso. Se esta estrutura continua sendo usada, a razão é muito simples: ela apela à mente humana em um nível inconsciente, aproximando-nos da história que está sendo contada.

Mas a Jornada é apenas o arcabouço de uma casa: você pode colocar o que quiser ali dentro, disposto da maneira que desejar. Alguém que exige originalidade demais no formato das paredes pode estar se preocupando mais com forma que com conteúdo.

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Agora vou enumerar e explicar de forma bastante básica sobre cada uma das etapas da Jornada do Herói. Para se aprofundar mais, recomendo ler primeiro o livro A Jornada do Escritor, de Christopher Vogler - por ser mais simples - e depois partir para O Herói de Mil Faces, do supracitado Joseph Campbell.

Nota: Escolhi as nomenclaturas usadas por Vogler (ao invés das usadas por Campbell) justamente por serem mais simples.


PRIMEIRO ATO

Mundo comum - O lugar onde o Herói (o protagonista, em geral) habita, conhece bem e toma como definição de normalidade. No entanto, é necessário que haja algo de errado nele, pois já nessa etapa é apresentada a Problemática, o problema que aflige o protagonista e que ele terá que resolver ao longo de sua jornada. O Herói também quase sempre é especial de algum forma, embora ele próprio não saiba.

Chamado à aventura - O Herói é "convidado" a abandonar seu mundo comum e embarcar na aventura. Este convite pode ser tentador (através de promessas de riquezas ou felicidade) ou ameaçador e inevitável (com o intuito de fugir de algum perigo que se aproxima).

Recusa do chamado - Por mais que o Herói esteja descontente com o mundo comum, ele sempre rejeita a aventura em um primeiro momento. Até o Harry Potter, que vivia embaixo de uma escada, hesitou antes de aceitar o convite de Hagrid. Isso tem a ver com a tendência humana de permanecer dentro de sua zona de conforto e normalidade, por mais insatisfatória que ela seja.

Encontro com o Mentor - O Herói só aceita embarcar na aventura quando se sente preparado o suficiente para ela, e o Mentor é a figura recorrente que se encarrega disso, por enxergar no Herói um potencial que ele próprio não vê. O Mentor pode acompanhar o Herói pelo resto da aventura ou ser uma espécie de "doador de presentes", que aparece nesse estágio e depois deixa o Herói por conta própria.

Travessia do primeiro limiar - O Herói efetivamente deixa para trás o Mundo Comum e embarca no Mundo Especial. A partir daqui é que a aventura começa pra valer.


SEGUNDO ATO

Testes, aliados e inimigos -  Esta etapa costuma ocupar um grande pedaço da narrativa. Aqui o Herói começa a aprender as regras do Mundo Especial e a definir quem são seus aliados e seus inimigos (daí o nome). Narrativamente falando, é preparado o terreno para a posterior resolução da Problemática e também podem ser desenvolvidas tramas secundárias.

Aproximação da caverna oculta - Já mais experiente, o Herói deixa para trás os desafios secundários e se aproxima do verdadeiro vilão da história, uma figura conhecida como Sombra. A Sombra deve ser parecida com o Herói de alguma forma, e ao mesmo tempo essencialmente oposta. Ao ponto que os inimigos comuns podem ser rasos, o grande vilão deve ter um passado e uma motivação muito bem construídos.

Provação - Este é o momento central da história, a grande crise. Em histórias onde há a presença do humor, ele normalmente desaparece nesta etapa. O Herói finalmente confronta a Sombra pela primeira vez. No entanto, para que a história tenha a tensão necessária, é preciso que o antagonista seja muito mais poderoso que o protagonista; que seja virtualmente invencível. Assim, o Herói quase morre e passa por uma morte simbólica, escapando por pouco. Como diz o ditado, às vezes as coisas precisam piorar antes de melhorar.

Recompensa - Ao escapar da Sombra, o Herói leva algo consigo; pode ser algo físico ou apenas algum aprendizado, algo que o faz ter maior consciência de si mesmo. Ao renascer, ele passar por algo chamado Apoteose - literalmente transformação em deus - que o transforma de forma dramática. Só agora ele possui capacidade de derrotar o antagonista antes invencível, em uma espécie de deus ex machina.

(Nota: Deus ex machina é uma expressão latina que tem origem na tragédia grega e significa literalmente deus surgido da máquina. Se refere a algum mecanismo improvável utilizado pelo narrador para tirar o protagonista de uma situação apresentada inicialmente como imbatível)


TERCEIRO ATO

Caminho de volta - Agora o Herói precisa retornar ao Mundo Comum, mas não é tão simples. Ele pode ter entrado fundo demais no covil do vilão, de onde é difícil escapar. Ou pode apenas ser tentado a ficar no Mundo Especial, com medo de enfrentar o problema que havia deixado para trás lá no início. De uma forma ou de outra, é o momento em que o Herói deve se decidir por atravessar novamente o limiar.

Ressurreição - Ao voltar ao Mundo Comum, é como se o Herói houvesse ressuscitado. Este é o momento de ele rever ou pôr em prática tudo o que ele aprendeu com sua jornada e suas provações. Pode ser o verdadeiro clímax da história.

Retorno com o elixir - No início, o Mundo Comum era incompleto de alguma forma (por causa da Problemática, lembra)? Agora, com o aprendizado que trás de sua jornada, o Herói é capaz de corrigir isso e finalmente descansar, sentindo-se pleno.

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De forma bastante resumida, estas são as etapas. Mas lembre-se que elas são razoavelmente flexíveis quanto ao que representam pra história, e algumas podem até aparecer em ordens trocadas.

Agora faça o dever de casa: tente identificar estes padrões em alguns livros ou filmes, especialmente de fantasia ou ficção.

1 comentários:

Unknown disse...

Muito interessante o post! É visível que qualquer boa história de aventura está intrinsecamente ligada ao monomito. Vai ser de grande utilidade. Abraços!

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